Entre a cabeça e o coração e os sentidos, as palavras
A terceira condição para conhecer-entender é saber que o
sentimento só sente o que as palavras deixam sentir, mas que a onipotência das
todo-poderosas palavras está sempre a serviço do esforço humano de sentir o que
ainda não foi sentido, de dar a conhecer o desconhecido, de explicar o
inexplicado, de permanentemente ordenar e reordenar o caos. E aí, então,
escutar quem já tentou traduzir em palavras (ou em poesia, que é a mesma coisa)
o mesmo empasse: no caso, Rita Lee, a tua
mais completa tradução.
...
Depois de libertar o coração e dar-lhe tempo para sentir a
impressão, é preciso amar, ou odiar (são o mesmo sentimento, em outra
personificação ou momento histórico).
Quando te encarei
frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o
que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha
feio o que não é espelho
E a mente apavora o
que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era
antes quando não somos mutantes
E foste um difícil
começo, afasto o que não conheço
E que vem de outro
sonho feliz de cidade
Aprende depressa a
chamar-te de realidade
Porque és o avesso do
avesso do avesso do avesso.
Amamos aquilo com que nos identificamos, o outro sonho feliz de cidade de onde
viemos e que construiu nossa percepção para o conceito e o sentimento de
cidade, e odiamos aquilo que se recusa à nossa identificação, a outra cidade
que não reflete essa imagem, exigindo que empreendamos o árduo e doloroso
processo de reconstruir nossa percepção para dar conta de um novo conceito e de
um novo sentimento. De narciso a mutante, de criança a adulto, de ignorante a sábio,
os olhos (a percepção, o entendimento, o sentimento, a sabedoria) percorrem o
caminho que leva do espelho (pequeno
mundo familiar, paroquial, as primeiras pequenas certezas a respeito da vida) à
realidade (a descoberta da complexidade do mundo lá fora e a descoberta da
capacidade de reorganizar o mundo aqui dentro). E se o ódio é o avesso do amor,
e o amor, o avesso do ódio, quem é capaz de resistir a um olhar que não reflete
essa primeira cara infantil, ignorante e narcísica, acaba aprendendo que, pra
dar conta da riqueza e complexidade do mundo, esses dois sentimentos não são
suficientes: é preciso procurar o avesso de cada um desses avessos.
(Paulo Coimbra Guedes)