segunda-feira, 17 de setembro de 2012


Entre a cabeça e o coração e os sentidos, as palavras

 

A terceira condição para conhecer-entender é saber que o sentimento só sente o que as palavras deixam sentir, mas que a onipotência das todo-poderosas palavras está sempre a serviço do esforço humano de sentir o que ainda não foi sentido, de dar a conhecer o desconhecido, de explicar o inexplicado, de permanentemente ordenar e reordenar o caos. E aí, então, escutar quem já tentou traduzir em palavras (ou em poesia, que é a mesma coisa) o mesmo empasse: no caso, Rita Lee, a tua mais completa tradução.

 

...

 

Depois de libertar o coração e dar-lhe tempo para sentir a impressão, é preciso amar, ou odiar (são o mesmo sentimento, em outra personificação ou momento histórico).

 

Quando te encarei frente a frente não vi o meu rosto

Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto

É que Narciso acha feio o que não é espelho

E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho

Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo, afasto o que não conheço

E que vem de outro sonho feliz de cidade

Aprende depressa a chamar-te de realidade

Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso.

 

Amamos aquilo com que nos identificamos, o outro sonho feliz de cidade de onde viemos e que construiu nossa percepção para o conceito e o sentimento de cidade, e odiamos aquilo que se recusa à nossa identificação, a outra cidade que não reflete essa imagem, exigindo que empreendamos o árduo e doloroso processo de reconstruir nossa percepção para dar conta de um novo conceito e de um novo sentimento. De narciso a mutante, de criança a adulto, de ignorante a sábio, os olhos (a percepção, o entendimento, o sentimento, a sabedoria) percorrem o caminho que leva do espelho (pequeno mundo familiar, paroquial, as primeiras pequenas certezas a respeito da vida) à realidade (a descoberta da complexidade do mundo lá fora e a descoberta da capacidade de reorganizar o mundo aqui dentro). E se o ódio é o avesso do amor, e o amor, o avesso do ódio, quem é capaz de resistir a um olhar que não reflete essa primeira cara infantil, ignorante e narcísica, acaba aprendendo que, pra dar conta da riqueza e complexidade do mundo, esses dois sentimentos não são suficientes: é preciso procurar o avesso de cada um desses avessos.
(Paulo Coimbra Guedes)

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